sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Entidades intensificam jornada a favor do milho crioulo


A possibilidade da chegada do milho transgênico na região sul com a inclusão das sementes modificadas no programa gaúcho de financiamento Troca-Troca, já para a próxima safra, começa reascender os debates sobre biotecnologia, produtividade e saúde alimentar. Buscando preservar as variedades do milho crioulo e varietal, entidades ligadas à Agricultura Familiar aceleram uma jornada de ações em Pelotas e região.

Debates, audiências públicas, exposições e distribuição de sementes crioulas serão intensificados ao longo de agosto e setembro, pelo grupo de trabalho do Fórum Permanente da Agricultura Familiar. As primeiras atividades começam nesta quarta-feira com a reunião do Conselho da Cooperativa Sul Ecológica na sede do Capa (rua Santa Tecla, 510), participação nas próximas Feiras Ecológica (dias 12, 19 e 26, no Largo do Mercado), participação na 4ª Mostra Estadual do Milho Crioulo, na cidade gaúcha de Ibarama e exposição e distribuição das sementes no calçadão de Pelotas no próximo dia 21, às 9h.

- Na verdade iniciamos esse trabalho no mês passado com uma grande mobilização junto aos gestores públicos da região. Conseguimos detalhar aos prefeitos o risco a que esta medida submete toda a cadeia produtiva do nosso milho e em reunião com o presidente Cássio Mota, asseguramos o apoio da Azonasul. Agora partimos para a sensibilização da comunidade – frisou o engenheiro agrônomo do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa), Roni Bonow.

Também integram esse grupo entidades como Embrapa, Grupo de Agroecologia (Gae/UFPel), União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu (Unaic), dentre outras.

Junto às atividades de divulgação e debates dos problemas e implicações que as sementes transgênicas ocasionam, a Jornada também está com um abaixo-assinado em defesa do milho crioulo. O objetivo, segundo Bonow, é recolher 20 mil assinaturas na região.

Entenda a retomada da discussão sobre a transgenia

Até o ano de 2007 só era possível produzir e comercializar sementes geneticamente modificadas de soja, em território brasileiro. Mas naquele ano, um parecer da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) estendeu o uso da tecnologia também à cultura do milho.

No Rio Grande do Sul, as sementes do milho transgênico estão prestes a chegar à Agricultura Familiar. No último mês de abril, o Conselho do Fundo Estadual de Apoio ao Desenvolvimento dos pequenos Estabelecimentos Rurais (Feaper), organização governamental, decidiu pela inclusão dessas sementes no programa gaúcho Troca-Troca, em detrimentos das sementes crioulas e varietais, já para a safra 2010/2011.

A polêmica está lançada porque diferentemente da soja, o milho tem um sistema de polinização aberto o que favorece o cruzamento de cultivares através de ventos ou transportes de resíduos por aves e insetos.

- Estamos muito temerosos com esta decisão porque temos na nossa região entre Pelotas, Canguçu e São Lourenço o maior patrimônio em genética natural de sementes de milho crioulo com mais de 50 variedades e isto pode acabar de uma hora para outra com uma contaminação descontrolada dos transgênicos sobre os naturais – disse em tom de preocupação a coordenadora do Capa, Rita Surita.

Além dos problemas e incertezas, outro grande impasse persiste porque a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) anunciou recentemente a liberação de recursos para o subsídio de sementes crioulas e varietais de milho.

Saiba mais

O Programa Troca-Troca do governo gaúcho é um sistema de financiamento e subsídio para a aquisição de sementes por agricultores familiares.

Sementes Crioulas – são sementes primitivas que sofrem cruzamentos seletivos em decorrência da natureza e domesticação do homem.

Sementes Varietais – são sementes melhoradas naturalmente, resultado de cruzamentos de linhagens e variedades.

Sementes Transgências – são aquelas cuja genética é modificada inserindo materiais genéticos de bactérias, vírus, para a resistência de agrotóxicos, e que podem ser ainda estéreis sem a possibilidade de replantio. São produzidas e patenteadas por empresas do setor.

Milho crioulo gigante: patrimônio cultural do Peru



O Instituto Nacional de Cultura do governo peruano declarou como “patrimônio cultural” o conjunto de conhecimentos associados ao cultivo de uma variedade de milho branco de grãos gigantes. A declaração aconteceu em 04 de janeiro.

Esta declaração — a primeira que se outorga no país sobre métodos de produção de um cultivo — significa que os ditos conhecimentos são considerados parte da identidade e cultura do povo peruano e serão protegidos para as futuras gerações. O milho é conhecido como Paraqay Sara na língua indígena quechua.

Alguns especialistas observam, entretanto, que o cultivo do milho Paraqay Sara já estava protegido contra a influência dos direitos de propriedade intelectual desde 2005, quando o governo peruano concedeu uma “denominação de origem” à variedade — uma ferramenta legal internacionalmente reconhecida que certifica que um produto é oriundo de uma região em particular e produzido utilizando métodos específicos.

O milho branco cresce em um estreito corredor de 70 km no Vale Sagrado dos Incas, na região sudeste do Peru, e é produzido por somente 5 mil agricultores.

Segundo Rodomiro Ortiz, especialista em milho e consultor do Centro Internacional de Melhoramento de Milho e Trigo (CIMMYT), a declaração é importante tanto do ponto de vista genético como humano. “Foi o trabalho dos agricultores que melhoraram esta variedade de milho através de séculos mediante conhecimentos e tecnologias ancestrais que tornou possível preservar o germoplasma único que possui”, afirmou.

Sementes da paixão



Na Paraíba, mais de 220 bancos de sementes comunitários já se articulam em rede para conservar dezenas de variedades locais resgatadas pelas próprias comunidades. Objetivos são recuperar a agrobiodiversidade local, reduzir a dependência de governos e articular os agricultores em torno de sementes nativas e bem adaptadas ao próprio Semi-Árido: as chamadas sementes da paixão.

Foto: ASA Brasil


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Mais de 300 variedades de sementes nativas já foram catalogadas

O banco de sementes comunitário de Montadas (PB) foi a redenção para o agricultor Joaquim Pedro de Santana, de 59 anos. Quando o inverno chega e as primeiras chuvas alardeiam a urgência de plantar, ele sabe que terá os 50 quilos de semente de que precisa para povoar os quatro hectares de sua propriedade com feijão, milho, batata-doce, macaxeira, guandu, sorgo e girassol. As sementes, ressalta mais de uma vez, são todas variedades locais e nativas bem adaptadas ao clima e ao solo da terra em que nasceu. Para quem acha que a origem da semente não importa, ele avisa: “Estas sementes foram passadas dos nossos bisavós aos nossos avós, deles para nossos pais e nós havemos de passar elas para frente. Elas são daqui têm tantos anos que a gente e a nossa terra já conhecem elas bem demais”.

O banco, explica Joaquim, funciona desde 2000 como um estoque comunitário por meio do qual cada família associada toma emprestada uma quantidade de sementes e se compromete, segundo regras definidas na própria comunidade, a devolver a mesma quantidade acrescida de uma percentagem no momento da colheita. A estocagem feita em garrafas pet, a entrega e a devolução das sementes são realizadas sob a gestão das 45 famílias agricultoras associadas ao banco, que trabalham com 20 variedades de semente.“Hoje um saco de 70 kg de feijão-de-arranque custa R$ 180. Com o banco a gente economiza, tem segurança e consegue resgatar nossa cultura”, diz.

Rede de Sementes

O banco comunitário de que Joaquim participa é apenas a ponta de um novelo que já reúne mais de 220 bancos comunitários em torno da Rede de Sementes da Paraíba, mobilizada pela Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA-PB). Juntos, eles abrigam cerca de 6,5 mil famílias, residentes em 63 municípios, e conservam mais de 300 variedades de milho, feijão, fava, mandioca, girassol, amendoim e espécies forrageiras e frutíferas resgatadas pelas próprias comunidades. “Se incluirmos os bancos familiares, esse número sobe para 15 mil famílias”, explica Vanubia Martins de Oliveira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Campina Grande (PB).

A idéia, avisa, é assegurar a sobrevivência da gigantesca agrobiodiversidade que resultou dos policultivos e das rotações de cultura no Semi-Árido pelas mãos da agricultura familiar, o que permitiu reunir uma enorme variedade genética de sementes que melhor se adaptaram aos diversos micro-climas da região. Para ilustrar o alcance desta biodiversidade, um diagnóstico citado pelo Programa de Aplicação de Tecnologias Apropriadas às Comunidades (Patac) identificou, em apenas seis comunidades, 67 variedades de três espécies – feijão-de-arranque (Phaseolus vulgaris), feijão-macassa (Vigna unguiculata) e fava (Phaseolus lunatus). “A manutenção dessa diversidade é muito importante para a estabilidade econômica e ecológica da agricultura familiar no Semi-Árido”, avisa Vanubia.

Segundo especialistas ouvidos pelo Portal da RTS, esse modelo está ameaçado pelo tamanho cada vez mais reduzido das propriedades familiares, associado à irregularidade climática. É que os roçados, cada vez menores, dificilmente produzem o suficiente para atender às necessidades alimentares das famílias e recompor suas reservas de sementes para a safra seguinte. Para se ter uma idéia, a região Nordeste reúne hoje dois milhões dos estabelecimentos agrícolas familiares, que correspondem a 42% do total de unidades agrícolas do país. Cerca de 90% deles possuem menos de 100 hectares e 65% têm menos de 10 hectares, segundo estimativas da Embrapa. “A chuva está cada vez mais tarde. Aí, se a pessoa perde a safra, perde as sementes também”, afirma Joaquim.

Distribuição

Outro fator de risco, segundo o movimento, é a distribuição aos agricultores, pelo governo, de sementes originárias de outras regiões do país. Este ano, por exemplo, cerca de 184 mil famílias de agricultores familiares de seis estados do Semi-Árido brasileiro começaram a receber mais de 2.700 toneladas de sementes

Foto: Paqtc
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Festa da Semente da Paixão é um dos principais momentos de intercâmbio da Rede
de milho e feijão, dentro do Programa de Sementes da Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SAF/MDA). Este é o terceiro ano do Programa. No primeiro (2006), foram distribuídas sementes para 40 mil famílias. Em 2007, este número aumentou para 92 mil famílias.

Os estados que receberão as sementes são Paraíba, Piauí, Alagoas, Bahia, Ceará e Minas Gerais. No total, este ano o Programa vai atender 184 municípios, em 18 Territórios da Cidadania. Cada agricultor vai receber 5 quilos de feijão e 10 quilos de milho. O público beneficiário são agricultores familiares que participam do Garantia-Safra. “O MDA rechaça transgênicos ou sementes híbridas. Essa ação realmente não deve ter o tamanho que tem hoje, mas não podemos abandonar os agricultores que precisam de semente para a próxima safra”, diz o assessor técnico do SAF/MDA, João Intini.

Segundo ele, a distribuição é apenas uma das pontas do Programa Sementes. A outra é justamente o fortalecimento dos bancos comunitários, considerado um eixo estruturador das ações da secretaria. “Queremos que o maior número possível de produtores se articulem em torno dos bancos. A distribuição gratuita não nos interessa, até porque, com os bancos, os agricultores perdem a dependência do governo”, explica. Ou seja, a meta é ampliar o fortalecimento dos bancos e de roçados comunitários para, progressivamente, reduzir a distribuição direta aos agricultores.

Para isso, a SAF pretende articular a demanda junto à Associação Nacional de Agroecologia. Aliás, demanda para isso existe de sobra, diz Intini. Entre 2003 e 2006, por exemplo, a SAF disponibilizou chamadas para projetos no valor total de R$ 40 milhões. Apesar de não ser direcionado especificamente para este fim, R$ 4,5 milhões deste montante foram aplicados em sementes, dos quais R$ 1,5 milhão no Nordeste. “São projetos que apareceram espontaneamente e que mostram a mobilização dos bancos”, explica.

Reaplicação

Não existe um passo a passo para implantação de um banco de sementes. Contudo, diversas entidades da ASA-Paraíba vêm apostando em visitas de intercâmbio para que os agricultores possam conhecer outras comunidades que possuam bancos de sementes funcionando. “É importante também que as famílias possam fazer um diagnóstico ou mapeamento das principais sementes encontradas na comunidade e seu grau de importância para as famílias. Essa medida facilita uma leitura do patrimônio genético daquela comunidade, e ajuda a decidir quais sementes serão armazenadas, multiplicadas e resgatadas”, avisa Emanoel da Silva, agrônomo do Patac.

Em muitos municípios, explicam os membros da Rede, foram constituídas comissões de agricultores e agricultoras responsáveis por articular os bancos e administrar o complexo sistema de intercâmbios de conhecimentos e sementes. Assim, em cada uma das regiões do estado existem articulações dos grupos gestores dos bancos de sementes. “A Rede apenas articula estas microrregiões. Para isso, fazemos intercâmbios com agricultores-experimentadores e trocas de sementes”, diz Vanúbia.

Há, por exemplo, a Rede Sementes do Alto Sertão, que reúne 90 bancos de sementes. Na região da Borborema, o Pólo Sindical formou uma comissão de agricultores e agricultoras que gerencia uma rede de 80 bancos comunitários. No Cariri e no Seridó, o Coletivo Regional organiza a rede, articulando aproximadamente 200 agricultoras e agricultores inovadores. O mesmo ocorre no sertão, no Curimataú, no Coletivo ASA Cariri Ocidental (Casaco), no Fórum de Lideranças do Agreste (Folia), no brejo e no litoral.

A Rede Sementes da Paraíba, por sua vez, realiza suas avaliações e planejamentos por meio de uma comissão estadual composta por representações dessas diferentes redes microrregionais. Trata-se, portanto, de uma rede de redes. Cada comunidade ou região tem sua autonomia e formas próprias de gestão, mas todas se reúnem para a Festa da Semente da Paixão, momento de celebração que serve também para reafirmação política dos princípios do grupo, como no caso da crítica aos transgênicos. Ao todo já foram quatro edições. A próxima será em julho de 2009, quando os agricultores também vão aproveitar para trocar experiências.

“Mesmo estando numa mesma região, esses municípios têm características de solo, vegetação e pluviosidade que os diferenciam, e cada uma dessas particularidades exige um tipo de semente que se adapte melhor”, explica Emanoel.

Vanúbia vai além. É que, segundo ela, variedades diferentes de semente podem apresentar desempenho diferente num mesmo local se houver diferença marcante no regime de chuvas daquele ano, por exemplo. “Dependendo do inverno que se apresente, o agricultor sabe qual semente utilizar. Se chove muito, ele pode usar um tipo de feijão. Se chove pouco, usa outro”, diz.